Eucaristia e Encarnação ainda escandalizam?
Primeira
leitura (Js 24,1-2ª.15-17.18b)
A primeira leitura narra um episódio marcante na história religiosa de
Israel: A Assembléia de Siquém. Após uma longa viagem, os israelitas, vindos do
Egito, se estabeleceram finalmente na terra prometida. Ali encontraram um povo
de cultura mais elevada, os cananeus, que inclusive tinham outros deuses,
principalmente Baal, o deus responsável por chuvas e pela fertilidade dos
homens e dos animais.
Como os israelitas agora se dedicavam à agricultura, surgiu a tentação de
baldear para Baal, mais interessante para eles, já que Javé era o deus da
história e não da natureza.
Josué sentiu que era preciso intervir: convocou uma grande assembléia e
pediu que o povo escolhesse entre Baal e as divindades que seus antepassados
adoraram quando ainda se achavam no oriente (Suméria: “além do rio Eufrates”) e
do Egito e Javé. “Quanto a mim, eu e
minha casa, diz Josué, serviremos ao Senhor.” É bom esclarecer que nem todos os
filhos de Jacó foram para o Egito; alguns ficaram na Palestina que então não
conheciam Javé. O povo respondeu sem hesitação:
“longe de nós abandonarmos o Senhor para servirmos a outros deuses” ( v.15)
Uma explicação: como é possível
que os israelitas que haviam presenciado tantos “milagres”, durante o Êxodo, de
repente queriam baldear para Baal? A resposta é simples: o Êxodo não foi tão
maravilhoso como o filme “Os dez mandamentos” quer fazer crer. Foi antes uma
fuga de escravos (de cinquenta a trezentos) que deu certo, quando outras fugas
não o deu. Nós diríamos: “Graças a Deus”. Já os autores do Êxodo escreveram uma
epopéia. Assim os acontecimentos que envolvem o Êxodo: a matança dos
primogênitos, o Pessah (a páscoa), a passagem pelo mar, o maná, as
codornizes, a serpente de bronze, a rocha donde fluiu água, obedecem a um
gênero literário chamado epopéia que engrandece os eventos e os personagens
levando-os a um nível maravilhoso...Não são fatos históricos, não mais que os
eventos narrados pela Ilíada de
Homero, por exemplo. Nessa epopéia, escrita uns trezentos anos mais tarde, se encaixa também o famoso e lendário cerco de
Jericó. Quando os israelitas entraram na terra prometida, Jericó já havia sido
destruída há quatrocentos anos.
Segunda
leitura (Ef 5,21-21-32)
Esta leitura trata das relações entre os diversos membros de uma família.
A ideologia ou o segredo da harmonia que deve presidir a família cristã é o
princípio: “Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo.(v.21).
Para que este princípio funcione é preciso que pais e filhos frequentem a
Igreja onde ouvirão os conselhos de Jesus, e na comunhão se unir a Jesus e ao
seu evangelho que estabelece: “Jesus não veio para ser servido mas para servir”
(Mt 20,28). Lembro que “comungar” é aceitar Jesus e a sua mensagem!
Em seguida, Paulo recomenda às mulheres: “Sede submissas aos vossos
maridos, como ao Senhor” (vv.22-23). As mulheres protestam, e com razão. Mas é
preciso lembrar que no tempo de Paulo a sociedade era patriarcal, ou se
quisermos, “machista”. Nessa sociedade a
recomendação de Paulo era natural. Hoje, porém, não é mais assim. É que durante os dois mil anos a sociedade
evoluiu e reconheceu a igualdade entre homem e mulher. Em 1948 a ONU declarou
que todos os seres humanos são iguais independente de sexo, raça, cultura etc.
Assim sendo, o casamento é a união entre dois iguais. É bom lembrar também o
que lemos no Gênesis 1,27: “Deus criou o homem à sua imagem, criou- os
homem e mulher”. Isto é, de imediato Deus os criou como duas metades que devem
viver um para o outro de modo a formarem “uma só carne”.
Não obstante, a igualdade entre homem e mulher ainda não é um fato. Todos
os dias ouvimos falar de feminicídios. Na verdade, nem mesmo na Igreja a
igualdade é um fato estabelecido: as mulheres não têm acesso ao sacerdócio:
diaconato e presbiterato.
Certamente não agrada que Paulo tenha começado a dar esses conselhos
justamente às mulheres que talvez sejam as que menos precisam (neste ponto
estou de acordo com elas). Mas nos versículos seguintes (vv.25-33) começam as
recomendações de Paulo para os maridos: “Maridos, amai as vossas mulheres, como
Cristo amou a Igreja e se entregou por ela.”
Ôpa, se as mulheres forem amadas por seus maridos como Cristo amou a
Igreja, elas não tem porque reclamar. Está mais do que bom. Mas as mulheres
gostariam de ouvir: “Maridos sede submissos às vossas mulheres”. Mas não é necessário:
o verbo “amar” diz a mesma coisa e até mais. Se amar é servir, então os maridos
devem ser os primeiros a servir. Portanto, os maridos que “não são submissos”
às próprias mulheres, que mandam sem consultar ninguém, que no campo da
sexualidade se arvoram o direito de serem
os únicos a estabelecer as horas e os modos sem se preocupar com aquilo
que agrada às próprias mulheres, estes maridos, embora casados na igreja,
comportam-se ainda como pagãos.
Evangelho (Jo 6, 60-69)
Estamos aqui no final do 6º capítulo de João. Capítulo este composto inteiramente pelo evangelista,
setenta anos após a morte e ressurreição de Jesus. Portanto não estamos diante
de palavras diferidas por Jesus mas de uma interpretação da mensagem de Jesus
feita por João. Trata-se não tanto da eucaristia mas de crer em Jesus. Crer ou
não crer em Jesus, eis a questão, diria Shakespeare. A questão surge diante da
afirmação de Jesus de ser o pão da vida.
Os discípulos reagem com a dúvida.
Jesus não se surpreende, pois a incompreensão e a rejeição fazem parte da
consciência humana (v.61). João Paulo II afirmou num dos seus escritos que a
consciência é um verdadeiro sacrário. Portanto, o homem deve sempre seguir a
sua consciência, mesmo que esta lhe sugira uma outra escolha.
Em seguida, em vez de abrandar as
suas exigências, Jesus revela mais um enigma e anuncia um momento dramático
para a comunidade: o seu regresso ao céu do qual ele desceu como pão: “Que
será, então, quando virdes subir o Filho do Homem para onde ele estava antes?”.
Em outras palavras: “sentis tanta dificuldade para aceitar a minha
proposta agora, estando eu no meio de vós, o que acontecerá quando tiver
voltado para o Pai?” Exigir-se-á uma fé muito mais pura independente de
qualquer verificação, de qualquer visão. Bem que Jesus disse a S.Tomé: “Felizes
os que não viram e creram”.
Depois da afirmação de Jesus de ser o pão da vida, “muitos dos seus
discípulos se retiraram e já não andavam com ele.” (v.66).
Fundamentalmente trata-se de pessoas coerentes: deram-se conta que o
Mestre é muito duro, não sentem o impulso de segui-lo e se afastam. Jesus
respeita a liberdade de cada um, não obriga ninguém a participar de sua missão,
não impõe a ninguém “comer a sua carne”.
“Comer a minha carne e beber o meu sangue”. Eis uma linguagem difícil, ou
até mesmo escandalosa para o homem
moderno porque sugere canibalismo. A meu ver deveria ser evitada. Alguns
estudiosos acham que é uma interpolação (acréscimo estranho) inserido por outro
escritor no texto de João.
Seja como for, é preciso aceitar a linguagem simbólica: “pão” ou “corpo e
sangue” designam a pessoa de Jesus, na linguagem semita. “Símbolo” não
significa algo que não tenha existencial real, mas é uma linguagem que quer
expressar uma realidade profunda e misteriosa. Jesus designa a si mesmo como
pão; assim como comer o pão nosso de cada dia é necessário para a vida, assim
“aceitar Jesus” é necessário para o
homem atingir a sua verdadeira realidade
que S.Agostinho exprimiu nestas palavras: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e
inquieto está o nosso coração até que
descanse em vós.
É claro que Jesus como pão não se refere à sua existência terrestre, de
carne e osso. Esta já não existe. Foi glorificada pela morte e ressurreição. O
que recebemos na comunhão é o Jesus assim como está no céu. Mais exatamente:
recebemos o sacramento, ou o símbolo desse Jesus. Comungar é pedir que Jesus
passe a fazer parte de nossa vida.
Pão e vinho consagrados permanecem quimicamente o que são. Nada muda no
domínio físico. Mas adquirem um novo significado ou uma nova finalidade: não
servem mais para alimentar o corpo, mas sim para alimentar o nosso espírito.
O ser humano nasce carente do ponto de vista físico, psicológico e
espiritual. A adesão a Jesus garante a plena humanização do homem.
Depois desta explicação, caros
leitores, qual seria a sua resposta à pergunta de Jesus: “Vocês não querem ir
embora também”?. Vocês vão embora, ou respondem com S. Pedro: “Nós vamos ficar
porque você tem palavras de vida eterna.”
Comentários
Postar um comentário