Segundo Domingo do Tempo Comum – Ano C



DEUS E A HUMANIDADE, O CASAMENTO QUE DEU CERTO

Primeira leitura (Is 62,1-5)
Para descrever seu imenso amor pelo povo de Israel, Deus usou a imagem do amor conjugal por ser o mais sublime.
No trecho do profeta Isaías, relatado na leitura, Jerusalém é comparada a uma esposa, chamada com nomes estranhos: a “abandonada”, a “devastada”, porque fora infiel a seu esposo e por isso deportada para a Babilônia. Parecia o fim de uma relação, como acontece entre os homens. O amor de Deus, porém, não é inconstante e frágil como o dos homens. Não obstante as traições, ele nunca repudia a esposa. O profeta conhecia estes sentimentos do Senhor; por isso prometeu ao povo desanimado: Jerusalém receberá um nome novo, será chamada: “a minha predileta”

Segunda leitura (1Cr 12,4-11)
O tema da leitura são os carismas. “Carisma” significa “dom gratuito de Deus”, Portanto uma coisa boa. Mas em Corinto havia muita confusão em torno dos carismas, porque em vez de colocá-los a serviço da unidade da comunidade, alguns os usavam para aparecer, para impor-se, para mostrar-se superiores aos demais. Daí invejas, ciúmes, discórdias.
D’entre os carismas, o último a ser elencado por Paulo, era o dom de falar em línguas. Durante as orações comunitárias alguns entravam em êxtase e falavam línguas estranhas. Algo semelhante acontece também em nossos dias, durante os encontros dos membros de algumas seitas ou certos movimentos religiosos (RCC, grupos de oração): o ritmo da música, a repetição de sons incompreensíveis, as danças, os aromas, as luzes ofuscantes podem provocar manifestações de paroxismo ou de transe. Nesse clima de exaltação coletiva alguém pode perder o contato com a realidade, pode ficar transtornado e pronunciar frases incompreensíveis para os não iniciados. Na verdade são fenômenos psíquicos, produtos da mente humana, sem valor religioso.
Segundo Paulo, há muitos carismas v.4-6), o que é providencial pois enriquece a comunidade. O perigo que existe é o de utilizar estes “carismas” para promover a competição, para despertar invejas em vez de favorecer a unidade. Paulo, na leitura de hoje apresenta uma lista muito ampla de carismas. O último é o dom das línguas, a respeito do qual Paulo adverte: se não houver ninguém que interprete, não tem valor.

Evangelho (Jo 2,1-2).
À primeira vista esta passagem parece a simples narrativa de um milagre. Mas um olhar crítico descobre alguns pormenores surpreendentes: João não poderia ter escolhido outro episódio mais interessante para o seu primeiro milagre do que um fato tão banal como a falta de vinho? Era preciso um milagre? Não bastaria fazer uma “vaquinha” entre os convidados? Se os convidados já tinham bebido bastante porque aumentar a quantia de vinho? João ainda diz que “Jesus manifestou a sua glória”. A cura do cego de nascença ou a ressurreição de Lázaro não manifestariam melhor a “glória de Jesus”?
E mais! Porque não se fala dos protagonistas da festa? A noiva não consta. O noivo desempenha um papel insignificante e não diz palavra alguma. Mais importante são o mestre-sala, os servos e as talhas que são descritas até nos mínimos detalhes.  Porque numa simples casa deveria haver tantas talhas de pedra par as purificações? Porque se fala da mãe de Jesus sem citar seu nome?
Há inclusive a misteriosa referência à hora de Jesus. Uma hora dramática que passo a passo se aproxima. Dela falará mais tarde o Evangelho de João (Jo 7,30; 8,20; 12,23.27; 17,1) Por fim, porque, depois de uma resposta negativa e um tanto áspera dada à sua mãe, Jesus acaba operando o milagre?
Não! Não estamos aqui diante de um simples fato de crônica: por trás de um acontecimento aparentemente simples ocultam-se ideias mais profundas.
O evangelho de João é como uma fruta saborosa: é preciso “tirar a casca” para descobrir o conteúdo gostoso.
O vinho, na bíblia, é o símbolo da felicidade e o do amor (Eclo 10,19; Ct 4,10). “Vinho e música alegram o coração” (Eclo 40,20). Uma festa sem vinho se transforma num velório.” Que é a vida do homem se lhe falta o vinho”, se pergunta o Eclesiástico. (31,33). No tempo de Jesus o Reino que os profetas haviam descrito como um banquete farto com carnes gordas e vinhos finos parecia anda estar longe. É que a religião se tornara ritualista, sem vida. Para compensar, foram inventados ritos de purificação, as abluções rituais para as quais é sempre necessário ter à disposição a água necessária.
Na nossa narrativa as seis talhas de pedra estão vazias. É, portanto, impossível cumprir até mesmo aqueles ritos, inúteis, na verdade, pois não comunicam nem paz, nem serenidade, nem alegria.
As bodas de Caná sem vinho representam esta situação do povo desiludido, insatisfeito. O ímpeto de amor foi substituído pela observância de disposições jurídicas. Este tipo de relacionamento com Deus nunca trouxe felicidade.
As pessoas piedosas de Israel percebem que a situação religiosa na qual estão vivendo é insustentável. Para remediar não recorrem ao mestre-sala, isto é, aos chefes religiosos, incompetentes para realizar uma verdadeira festa, mas à mãe de Jesus que pode ser Maria, sem dúvida, mas também pode indicar a comunidade espiritual na qual Jesus nasceu e foi educado. Entendem que só dele pode vir aquela água viva que se transforma em vinho e traz felicidade para os convidados.
João coloca este “sinal” no começo do seu evangelho, porque é uma síntese de tudo o que Jesus fará depois. É ele o esposo que celebrará as núpcias com a humanidade.
A sua hora ainda não chegou pois ele ainda está no começo da sua vida pública. A festa já começou, mas atingirá o seu ápice quando “chegar a hora” de Jesus, no Calvário, quando ele dará sua vida por amor da esposa, quando, do seu coração transpassado, sairá “sangue e água”(Jo 19,34).
Jesus apagou para sempre a religião da tristeza. Apagou para sempre a imagem do Deus severo, que deve ser temido e respeitado. Rompeu as cadeias insuportáveis que enredam e oprimem (Mt 11,28). Essa religião que se limita a obrigações que devem ser cumpridas não manifesta a glória de Deus, pois não traz alegria para o homem. Jesus revelou a ternura de Deus, deu aos seus discípulos o seu vinho, a religião autêntica, a religião do amor. Esta destrói todos os medos, só transmite confiança e esperança.

Comentários

  1. Parabéns padre José! Uma das mais belas homilias que já li, sobre o meu milagre favorito, dentre todos que realizou o Senhor. E realmente um Deus da alegria e do encontro. Inicia a vida pública fazendo vinho e se despede da vida terrena dando uma janta para os amigos. Edlamar

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