Transfiguração do Senhor
A CERTEZA DA VITÓRIA
Primeira Leitura (Dn 7,9-10.13-14)
O texto é redigido em linguagem apocalíptica,
gênero literário estranho para nós. Para entender a mensagem é bom ler os
versículos precedentes (Dn 7,2-8).
Em uma dramática visão noturna, Daniel vê sair do
mar quatro enormes bestas: um leão, um urso, um leopardo e enfim
uma quarta besta espantosa, terrível, de força excepcional, que tritura todas
as coisas em seus dentes de ferro.
O que é que Daniel quer dizer com essas imagens
pavorosas? Ele mesmo explica: os animais são reinos tirânicos que se sucederam
no mundo e que, por sua vez, oprimiram Israel, o povo de Deus. O leão é
Babilônia, a cidade cruel cujo exército destruiu Jerusalém juntamente com o seu
templo; o urso e o leopardo representam outros
povos dominadores (os medos e os persas). A quarta besta, a pior de
todas, indica o reino de Alexandre Magno e de seus sucessores; entre estes, um
é particularmente malvado: Antíoco Epífanes, o perseguidor dos israelitas fiéis
à lei de seu povo. Ele está governando exatamente no tempo em que é escrito o
livro de Daniel (Dn 7,17-27).
Mas Daniel é testemunha também de uma outra cena
grandiosa e esta é descrita na primeira parte da leitura de hoje: no
céu são colocados tronos e um ancião (que indica o próprio Deus) assenta-se
para o julgamento. Eis a sentença: é retirado o poder das bestas e a última é
morta, destruída e lançada ao fogo (Dn 7,9-12). E o que acontece
depois?
Daniel continua: “Olhando sempre a visão noturna,
vi um ser, semelhante a um filho do homem, vir sobre as nuvens do céu” (v.13).
A ele o ancião (Deus) entrega o poder, a glória e o reino. “Filho do homem”
indica todo o povo de Israel e o caráter humano desse reino. Depois de tantas
bestas, eis que finalmente aparece um reino humano que privilegia os oprimidos
enquanto depositários das promessas, expectativas e realeza divinas.
Com o passar do tempo, o que em Daniel se referia
ao povo de Deus foi transferido para o Messias que deveria vir. Foi assim que o
Novo Testamento releu esta passagem: Jesus é o “filho do homem” que deu origem
ao reino dos santos do Altíssimo (Mc 14,62). Isso, contudo, não nos
impede de seguir a interpretação do livro de Daniel: o filho do homem é o povo
de Deus (nós) a quem foi confiado o projeto de liberdade e vida em meio às
perseguições que as feras de ontem e de hoje suscitam contra os que se mantém
fiéis.
Segunda Leitura (2Pd 1,16-19)
Estamos no tempo em que a Igreja está passando da
época primitiva para a chamada era pós-apostólica. Até aí o cristianismo fora
vivido com entusiasmo e esperava-se ardentemente pela volta gloriosa de Jesus.
Nesse momento, porém, o tempo de Jesus terrestre começava a perder-se no
passado e a vinda gloriosa de Jesus sempre mais distante. Então os descrentes
perguntavam zombando: “Onde está a promessa de sua vinda? Desde que nossos pais
morreram, tudo continua como desde o princípio do mundo” (2Pd 3,4).
O autor da segunda carta de Pedro responde a estes
ataques recordando a experiência feita “sobre a montanha”. Não estamos
inventando histórias, diz ele, mas referimos o que vimos e ouvimos. Por
revelação do céu compreendemos que Jesus é “o Filho predileto” no qual o Pai se
compraz (vv.16-18).
Também para nós, nos dias de hoje, a transfiguração
de Jesus conserva o mesmo significado que tinha para os cristãos do fim do 1º
século d.C.: é um anúncio da última manifestação do Senhor que, como “estrela
da manhã”, um dia brilhará em nossos corações.
Evangelho (Mt 17,1-9)
Convém dizê-lo logo de início, a narrativa da
transfiguração não é crônica de um fato, mas um texto denso de teologia, uma
“bricolagem” que usa símbolos e ideias do Antigo Testamento para passar uma
mensagem sobre a identidade de Jesus.
1 A montanha. É curioso o fato de,
sobretudo no evangelho de Mateus, Jesus, quando diz ou faz algo de
particularmente importante, sobe sempre a um monte: a última tentação de Jesus
(Mt 4,8); as bem-aventuranças (Mt 5,1); a multiplicação dos pães (Mt
15,29); a última aparição de Jesus aos apóstolos (Mt 28,16); e a transfiguração
(Mt 17,1): Jesus conduz alguns dos seus discípulos a “uma alta montanha”, para
introduzi-los nos pensamentos mais secretos do Pai. Se Jesus pede que não
contem nada a ninguém é sinal de que esta experiência é extremamente
importante.
No alto da montanha a bíblia situa os grandes
encontros, as grandes manifestações do Senhor aos homens: Moisés (Ex 24,15ss)
e Elias (1Rs 19,8). Mais do que um espaço real, o monte indica um
momento de intimidade com Deus.
2. Os três discípulos. Êxodo 24,1 refere
que Moisés quando subiu ao monte Sinai levou consigo três pessoas respeitáveis:
Aarão, Nadab e Abiú.
Também Moisés foi envolvido por uma nuvem e, no
cimo do monte, seu semblante foi transfigurado pela luz da glória divina (Ex 34,30).
Agora está claro o que Mateus quer dizer: ele apresenta Jesus como o novo
Moisés, como aquele que dá ao novo povo de Deus, representado pelos três
discípulos, a revelação de Jesus.
3. O semblante luminoso e as vestes
brancas são sinais do mundo de Deus. Cf. primeira leitura (Dn 7,9).
O mesmo significado tem a nuvem luminosa que a todos envolve
com sua sombra. Uma nuvem luminosa protege o povo de Israel no deserto (Ex 13,21).
Também quando Moisés recebe a Lei, o monte é envolvido por uma nuvem (Ex 24,16-18):
indica a presença de Deus.
4. Elias e Moisés. Elias
representa os profetas do Antigo Testamento e Moisés representa a Lei; Todo o
Antigo Testamento fala com Jesus, isto é, orienta para Jesus, recebe seu
sentido em Jesus. Quando os discípulos abrem os olhos não veem outros a não ser
Jesus. Moisés e Elias desapareceram, já cumpriram sua missão: apresentar ao
mundo o Messias, o novo profeta, o novo legislador. Agora, quem tem a palavra é
Jesus, só ele.
5. As três tendas, detalhe de
difícil explicação. Talvez indique o desejo de Pedro de deter-se para perpetuar
a alegria experimentada em um momento de intensa oração com o Mestre. Algo
semelhante pode acontecer conosco após ter experimentado paz e conforto
espiritual em um retiro. Mas, enfim, é preciso voltar à vida real para retomar
com nova motivação a nossa atividade junto às pessoas que sofrem e precisam de
nossa solidariedade cristã.
6. A voz. É a interpretação de Deus
sobre tudo o que aconteceu. O Pai reconhece em Jesus o seu “Filho muito amado”,
o servo fiel no qual se compraz. Quem queira servir a Deus é convidado a
seguir-lhe as pegadas. “Ouvi-o”, diz a voz do céu, também quando
ele parece propor caminhos por demais difíceis, estradas muitíssimo estreitas.
Uma experiência religiosa não é verdadeiramente cristã se ela nos afasta das
pessoas, nos instala comodamente na vida e nos afasta do serviço aos mais
necessitados.
“Ao ouvirem a voz, os discípulos caíram com a face
por terra e tiveram medo”. Dá-lhes medo “escutar só a Jesus” e seguir seu
caminho humilde de serviço ao reino da justiça até a cruz. É o próprio Jesus
que os liberta de seus temores. “Aproximou-se” deles como só Ele sabia fazê-lo;
‘tocou-os” como tocava os enfermos, e lhes disse: “Levantai-vos, não
tenhais medo” de escutar-me e de seguir só a mim.
Poucas palavras se repetem mais nos evangelhos do
que estas de Jesus: “Não tenhais medo”, “confiai”, ”não se perturbe o vosso
coração”, “não sejais covardes”. O relato do Tabor traz a mesma mensagem.
Também nós cristãos de hoje temos medo de escutar
só a Jesus. Não nos atrevemos a colocá-lo no centro de nossa vida e comunidade.
Não o deixamos ser a única e decisiva Palavra. Ou, retomando o evangelho do
domingo anterior (17° Domingo comum A), o nosso tesouro pelo qual vale apena se
desembaraçar de tudo que possa impedir o acesso à verdadeira humanidade no
seguimento de Jesus. É o próprio Jesus que pode libertar-nos de tantos medos,
covardias e ambigüidades se nos deixarmos transformar por Ele.
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